Tela Em Branco 

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No princípio havia o nada absoluto.

Nem mesmo a névoa existia, embora fosse imaginada depois como sendo branca. E o vazio absoluto era igualmente branco, não escuro, e apenas esperava ser preenchido de ideias; mas a névoa surgiu e preencheu o vazio com um pouco mais de branquidão. Este vazio era o imenso vazio de uma tela em branco.

Com o tempo, nenhuma ideia veio à mente, e o nevoeiro a invadiu por completo.

O vazio nebuloso tornou-se seu mundo interior, conforme olhava para a tela e tinha a mente invadida e impregnada com sua falta de significado; nenhuma história nova era contada, nenhuma pintura nova era revelada, nenhum sonho novo era libertado da caixa mágica de sonhos; nada havia além do nevoeiro, que também esvaziava os olhos e tornava o seu olhar distante.

Nada além de nada

Em sua mente, os primeiros pensamentos desconexos surgiram aos poucos, lentamente, e a preencheram de ideias que até rimavam umas com as outras, mas que aparentemente não traziam um sentido maior e nada diziam de relevante.

De repente, em sua mente havia também o ruído vibrante, incômodo e constante de estática a invadir e desfazer toda a harmonia ainda existente entre seus pensamentos desconexos, que agora começavam a brigar entre si, irritados e incomodados com o barulho. Toda a estática do mundo trazia desequilíbrio à mente e dissonância aos pensamentos.

Tudo ao derredor parecia conspirar contra as tentativas de reorganizar os pensamentos para transformá-los em palavras e ideias escritas, em traços e figuras no papel ou em notas musicais de uma nova composição.

Tudo à sua volta tinha o poder de desconcentrar: o escândalo das motocicletas na rua; o grito das sirenes; o suor frio que escorria pela testa e pingava no olho; o tiquetaquear do relógio a pontuar a passagem do tempo que se perdia ao esperar por uma inspiração que não apareceria tão cedo…

Tudo o mais era distração, e seus pensamentos eram raptados, e eram afastados das maravilhas que deveriam criar com a soma de seus esforços.

Não havia poesia no ar.

Havia somente a hipnose da estática.

Sem piscar, olhava para a tela branca e ouvia o mundo de sons desconexos que gritavam, murmuravam e sussurravam em meio à estática, sons que o desestabilizavam lentamente. Seu coração pulsava violentamente, acelerado. Chegou a hora de admitir que ela havia sumido.

Onde ela foi parar? Sua inspiração, onde foi que se escondeu?

As pessoas sempre perguntavam se tudo ia bem com o seu trabalho, ou quando finalmente traria sua próxima obra de arte ante os olhos do mundo, como se o vissem como uma tela em branco ambulante pronta para revelar segredos.

Perguntavam se a inspiração ainda habitava no peito. Não, não mais. Sua musa da inspiração se foi!

Com muito esforço, aos poucos conseguiu resistir à hipnose provocada pela estática e pelo branco da tela. Suando frio e com lágrimas nos olhos, desviou o olhar da visão deste tormento feito de vazio, levantou-se e saiu. Foi à varanda e ali ficou a olhar o horizonte.

O pôr do sol, os pássaros no céu, os garotos sorridentes que iam ou voltavam da rua ou do colégio, todo o mundo parecia ignorar seu suplício – da fuga e do abandono de seus pensamentos inspiradores.

Por um breve momento, uma ideia veio à mente: considerar o bloqueio criativo como tema para superar o próprio bloqueio sofrido; mas não demorou a descartar tal ideia, um dos clichês mais batidos que todo artista já experimentou.

Queria fazer algo diferente

Por x dias consecutivos, abandonou toda a esperança de prosseguir com o trabalho que se recusava a criar um significado e ficou observando o mundo de seu lugar na varanda. Até que um pensamento inspirador, ainda que incerto quanto aos efeitos que provocaria, veio à mente: Por que você não procura inspiração lá fora? Há todo um mundo para ser descoberto, repleto de histórias que esperam ser contadas.

No princípio havia o nada absoluto.

Depois, o nevoeiro.

Por fim, veio o sorriso do artista ao descobrir que poderia sair do nevoeiro para transformar o nada em alguma coisa.

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2 COMENTÁRIOS

  1. A gente perde muito tempo até perceber que como já cantava Lulu Santos “Há tanta vida lá fora”

    Belo texto garoto.

  2. Grato, Airton. A imaginação faz parte, mas nada melhor do que buscar inspiração na vida. Há tanto para ser visto.

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