Outro dia, lembrei que tinha o primeiro volume do “Em busca do tempo perdido” do Proust e resolvi resgatá-lo das profundezas da minha estante, porque estava a fim de me engajar numa empreitada literária depois dos meses afastado do texto artístico, por motivos de: falta de paciência, ceticismo, frustração, etc., etc.
Peguei o livro e vi que era uma edição de 1972 da editora “Globo” de Porto Alegre, traduzida por Mario Quintana (que pelo visto gostava muito desse tipo de literatura, pois traduziu Virgínia Wolf também). Dei uma folheada no livro pra ver quantas páginas tinha (pois realidade, não é mesmo?) e uma papel amarelado caiu do meio do livro. O tal papel tinha uma lista, impressa com tinta de mimeografo, dos presidentes e vice-presidente, tesoureiros, secretários e conselheiros do grupo escolar “Santo André”.
Mas, como de costume, resolvi virar a folha. E tinha uma coisa interessante escrita a lápis:
A dominação dos nossos instintos vitais pela consciência social ou ego é uma das pré-condições da (nesse ponto vinha o pronome possessivo no feminino “nossa”, que o autor riscou por cima, provavelmente porque não queria se considerar como parte desta merda) sociedade repressiva, progressista e tecnológica.
No despertar sexual, o indivíduo sente o conflito existente entre aquilo que para ele significa prazer (assim sublinhado) e o mundo da realidade, tal qual os pais lhe mostram.
Harmonizando o princípio de realidade c/ o princípio de prazer, o indivíduo, está socialmente apto a produzir p/ a sociedade repressiva, e é denominado normal, por uma consciência moral que se desenvolveu e é literalmente insana.
Obvio que achei muito interessante o fato deste ser humano ter escrito um texto de cunho psicanalítico, mas depois cheguei à conclusão de que não é uma surpresa tão grande visto que o documento se encontra dentro de um livro de Proust (que pra quem não conhece é um escritor francês da era moderna, da primeira metade do século XX e que mexe com esses paranauê de subjetividade). Mesmo assim resolvi dar uma fuçada no livro pra ver se encontrava mais alguma coisa.
Fui folheando as páginas e vi que havia grifos por todo livro e inscrições nas margens de algumas delas. Inscrições como: “recusa”, “aqui começa o interesse de Swan por Odete” (spoiler), “procura os detalhes nas obras de arte”, “decisão do rumo de sua vida” (difícil), “colocar isso no trabalho”.
A pessoa estava lendo “No caminho de Swan” do Proust pra fazer um trabalho. Imaginei que pudesse ser um trabalho de faculdade, já que não se faz trabalhos sobre livros inteiros de Proust nas escolas. No entanto pensei que talvez fizessem em 1972. Mas trabalhos sobre livros franceses nas escolas de ensino (tecnocrático) básico da ditadura militar provavelmente estavam fora de cogitação.
Depois dessa pequena elucubração, resolvi fazer o óbvio: olhar a primeira folha do livro. E nesta folha tinha uma inscrição, alguma coisa como: Laura de Faseio com a data de 1974. Logo imaginei, “Laura era estudante de literatura e professora do grupo escolar ‘Santo André’”.
Entre 1974 e 2015 são 41 anos. O muro de Berlim ainda estava de pé, a guerra do Vietnam prestes a terminar, era o fim do projeto de bem estar social e o início do neoliberalismo, e a “revolução” dos computadores ainda está em curso. Hoje ainda temos guerras e embates ideológicos e políticos, o mundo anda umas quatro vezes mais tecnológico, com informação em excesso, e provavelmente mais insuportável.
Sofremos o efeito do neoliberalismo em tudo que é canto: viajar o mundo (como nos anos 70) já não é mais acessível devido à indústria do turismo, assim como sair da casa dos pais antes dos 42 anos de idade devido à especulação imobiliária. No entanto o mesmo tipo de gente sobrevive: aqueles interessados por literatura, e que gastam grande parte do seu tempo lendo 352 páginas de um romance (pois é), pessoas que detestam a sociedade, e que buscam dar uma olhada com um pouco mais atenção ao status quo.
Também sou estudante de literatura. Caso eu venha me dedicar à docência, vou achar uma situação dez vezes pior em relação àquela que Laura encontrou, mas fica aí, entre outras, uma semelhança entre nós. Por fim, não sei se vou gostar do livro de Proust, mas pelo menos gostei da sua leitora.
Ps.: Essa pequena experiência me levou a concluir que devo voltar a fazer minhas excursões pelos sebos do centro velho de São Paulo, que fazia quando era mais jovem (comprei esse livro em 2012).