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Dois: Pássaro Livre
O sonho de libertar-se se tornou, agora, uma inesperada e feliz realidade.
Livre de sua prisão, o pássaro cantarolava um hino doce de libertação.
De dentro de si soava a mais bela e emocional canção de liberdade.
O céu seria o mais novo limite para o bater de suas asas.
Não estava mais preso em seu conformismo cego de antes; não mais seria um prisioneiro de suas antigas amarras.
Neste mundo novo e aberto, seus voos seriam livres, gigantes, legendários.
Bateria asas entre águias e pardais, entre abutres e canários.
Muito promissor parecia o mundo que lá fora esperava pelo pássaro.
Não o sabia, mas sua história era um caso raro.
Seus amigos e parentes distantes de moicano morreriam engaiolados.
Não, não o sabia. E assim, o pássaro se sentia muito desorientado e feliz.
Estava livre em um mundo de promessas, livre de sua prisão infeliz.
Mas…
Três: A Liberdade Também É (Ou Também Pode Ser) Uma Prisão
Mas a calopsita logo descobriu que o mundo fora da gaiola era um mundo hostil.
Presenças maiores estavam à espreita, e seguiam seus movimentos, seu rastro, e sentiam seu apetitoso cheiro. Das trevas noturnas, cintilantes olhos verdes, dourados e avermelhados a observavam. Observavam em silêncio. Em silêncio aguardavam.
Sentindo-se encurralada, a calopsita ficou agitada. Olhava em todas as direções, sentindo a presença da morte escondida atrás de cada moita ou sobre os galhos de velhas árvores. Soltava um pio atrás do outro por não conseguir contê-los em sua inquietação.
Sem demora, um felino desnutrido saiu de seu esconderijo e partiu para cima da calopsita, dando o bote sobre as costas da ave indefesa. Porém, ele não foi muito silencioso, e seu movimento foi previsível.
Com um movimento ágil, apesar de impensado, a calopsita saltou e voou para longe, e o felino atrevido deu com a cara no chão.
A calopsita voou até os galhos mais baixos de uma árvore próxima, onde uma família conhecida de periquitos – pai, mãe e filho – estava empoleirada e observava a cena com olhos curiosos, mas sem maiores comentários.
E a calopsita posou num desses galhos, e ali ficou.
Estava livre em um mundo hostil.
Mas o silêncio no mundo se tornou quase absoluto pelas horas seguintes, a não ser pelo canto dos grilos.
Conseguiram sobreviver à primeira noite em liberdade.
Na manhã seguinte, outro felino (ou talvez o mesmo da noite anterior) tentou subir nos galhos da árvore depois de ouvir o harmonioso primeiro canto da manhã do quarteto. Os pássaros não esperaram até que ele alcançasse o galho mais baixo; logo voaram e se espalharam; a calopsita pousou no galho de outra árvore mais distante.
Já os periquitos, eles sumiram de vista e desta história.
O felino viu um pardal empoleirado nos galhos mais altos, e logo substituiu sua presa em potencial. Subiu mais alguns galhos, mas antes mesmo de alcançar três galhos abaixo do poleiro do pardal, o pequenino alçou voo e sumiu de vista.
O felino soltou um miado de frustração, e ali ficou.
Preso em cima da árvore, inteiramente sozinho – a não ser pelas visitas rápidas de pardais e canários que ele simplesmente ignorou em seu novo estado de medo, pois
não conseguia descer daquela altura –, o felino ficaria ali por mais algum tempo, até ser notado e finalmente resgatado.
O tempo passou, e a calopsita, agora sozinha em seu novo poleiro, via o mundo criar movimento outra vez.
Dois humanos – dois garotos – se sentaram à sombra da árvore, em bancos imundos e vandalizados de pedra. Sorriam com escárnio.
Em outros tempos, garotos como aqueles poderiam ter sido garotos malvados com estilingues em mãos; mas não aqueles dois: durante o pouco tempo em que ali ficaram, eles nem sequer olharam para cima, tendo ambos suas atenções presas nas telinhas de seus respectivos aparelhos eletrônicos e nos motivos secretos de seus sorrisos sardônicos. Sim, os tempos são outros.
Sem água ou sinal de chuva e de poças para matar a sede, sem tomates ou sementes de girassol à vista para comer, a calopsita permaneceu imóvel em seu poleiro aberto. Não ousava sair dali para buscar o próprio alimento.
Estava presa em um mundo hostil.
Sozinho, o pássaro livre sobreviveu por mais um dia e mais uma noite.
Esmorecida, a calopsita estava distraída no momento em que, na manhã seguinte, outro felino (ou o mesmo teimoso de outro dia) saltou silenciosamente sobre os galhos e a golpeou de assalto, caindo felino e pássaro do galho que se partiu.
Desta vez, o felino conseguiu cair sobre as quatro patas, e, assustado pela queda, correu aos trancos e barrancos para longe; a calopsita, por outro lado, quebrou uma de suas asas quando atingiu o solo.
Não sobreviveria a mais um dia.
Porém, uma criança que por ali passava pensou ter visto algo – e viu. Acompanhada pela mãe, a criança se aproximou da árvore, e viram o pequeno pássaro que tentava, em agonia, sair do lugar. Falhava miseravelmente. Não estava morrendo, aparentemente não, mas logo morreria se ali ficasse.
Mãe e criança se entreolharam.
Sabiam muito bem o que deveriam fazer.
A calopsita ainda tentou bicar os dedos da mãe da criança, porém estava fraca demais, e deixou-se ser levada em segurança por aquelas mãos humanas. Em casa, a criança pegou uma caixa de sapatos, e nela colocaram o pássaro.
“Não se preocupe”, disse a criança. “Cuidaremos muito bem de você.”
Quatro: Imensidão Azul (Ou Tudo O Que Iria Perder)
Do mundo livre para o interior da caixa.
Da caixa para o interior da gaiola.
Havia tentado resistir à prisão com batidas agitadas de asas e dolorosas bicadas na mão.
Mas tão depressa se conformou, e logo sossegou na sufocante segurança da gaiola.
O pássaro recuperado agora olha para o mundo que existe e acontece do lado de fora.
Vê, sem muito entender, outros pássaros que preenchem a imensidão azul.
Pendurado lá fora, o pássaro vê tudo o que iria perder.
Não há beleza que se compare à beleza da liberdade.
Para os humanos, a beleza não pode ser livre, não livre e feliz de verdade.
E por não se empoleirar gentilmente nos ombros, o pássaro foi devolvido à prisão da gaiola.
Sua beleza e seu belo canto resgatados, engaiolados.
Enfim, de volta.